:: ‘Brasil’
Fim da “lista tríplice” pode ameaçar independência da PGR
Enquanto governo Bolsonaro acena com fim da tradição da lista elaborada pela categoria e que, segundo especialistas, confere legitimidade ao órgão, procuradores já travam disputa aberta pelo comando da instituição.
Dentro de um mês, os candidatos a procurador-geral da República, o cargo mais alto do Ministério Público Federal (MPF), vão começar a disputar a eleição para a chamada lista tríplice. Estar entre os três mais votados pelos colegas é, desde 2003, garantia de ter o nome avaliado pelo presidente da República, o responsável pela nomeação. Em 2019, a história pode mudar, e essa situação ameaça a independência da Procuradoria-Geral da República (PGR), dizem especialistas.
A lista tríplice começou a ser elaborada em 2001, numa tentativa de emular o que ocorre nos estados, onde os governadores são obrigados pela Constituição a escolher um dos integrantes da votação feita pelos promotores estaduais. A primeira edição da lista foi ignorada pelo então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Naquele ano, o tucano nomeou para o cargo, pela quarta vez seguida, Geraldo Brindeiro, que havia ficado em sétimo lugar na eleição interna dos procuradores.
Conhecido por seu alinhamento ao governo federal, Brindeiro ganhou o apelido de “engavetador-geral da República”. Nos oito anos em que esteve no cargo, ele arquivou inúmeros casos com suspeitas de corrupção, inclusive o que tratava da compra de votos para a emenda da reeleição em 1997, que permitiu a FHC se perpetuar no poder.
Os petistas Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016), por sua vez, adotaram como prática nomear o primeiro colocado da lista tríplice. Nesse período, o cargo de procurador-geral ganhou proeminência, em especial por conta de casos de corrupção, como o do mensalão.
Em 2017, pressionado por denúncias de corrupção contra si, o então presidente, Michel Temer, mudou a tradição. Em vez de nomear o mais votado pelos procuradores, ele escolheu Raquel Dodge, a segunda colocada. Agora, é possível que o presidente Jair Bolsonaro abandone por completo a prática e nomeie uma pessoa de fora da lista tríplice.
O indício mais recente de que isso pode ocorrer foi uma entrevista do advogado-geral da União, André Mendonça. Nomeado por Bolsonaro, ele destacou no início de abril que a lista tríplice não está prevista em lei, sendo apenas uma tradição. Ao fazer esse comentário, Mendonça reforçou o que o próprio presidente da República dissera em outubro de 2018.
Em uma entrevista, Bolsonaro não se comprometeu a seguir a lista tríplice e disse que nomearia alguém “livre do viés ideológico de esquerda”. Na sequência, afirmou que prezaria pela independência da instituição. “Não quero alguém subordinado a mim, como tivemos no passado a figura do engavetador, mas alguém que pense grande, que pense no seu país”, afirmou.
No entanto, abandonar a tradição da lista e ao mesmo tempo manter a independência da PGR podem ser objetivos contraditórios. “A lista tríplice, apesar de não estar prevista em lei, é uma prática inteligente e democrática, pois gera duas legitimações”, afirma Luciano de Souza Godoy, professor da escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
“Por um lado, há a legitimidade dentro da carreira, e o procurador-geral precisará do apoio da carreira para fazer bem o trabalho dele. Por outro, seguir a lista gera na sociedade uma percepção de independência do escolhido em relação ao presidente, pois caberá a ele investigar o próprio presidente”, afirma.
A possibilidade de Bolsonaro não seguir a lista tem animado concorrentes que buscam quebrar a tradição. Em recente entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, o subprocurador Augusto Aras se lançou como candidato “por fora”. Atacou o mecanismo da lista, levantou dúvidas sobre a idoneidade da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), entidade responsável pela eleição para a lista tríplice, e fez acenos ideológicos a Bolsonaro.
Aras disse que as questões indígena e de meio ambiente, que são objeto de ataques de Bolsonaro e, ao mesmo tempo, centrais na atuação do MP, não devem ser “radicalizadas”. O subprocurador insinuou que a campanha de preservação da Amazônia seria uma conspiração de ONGs e “países poderosos”. Antes, em dezembro, em entrevista a um jornal da Bahia, afirmou que o governo Bolsonaro seria uma “democracia militar”.
O ímpeto eleitoral de Aras provocou reações na categoria. “Essas declarações foram ditadas em cunho egocêntrico, e destroem uma importante conquista da classe, que é a prévia consulta”, afirma Cláudio Fonteles, o primeiro procurador-geral da República nomeado por Lula (2003-2005). “Excluir esse sistema para partimos para a luta pessoal e individual é reinstaurar as mazelas na instituição”, diz.
Outro que, segundo relatos da imprensa, busca ser alçado ao posto de procurador-geral é Jaime Cássio de Miranda, chefe do Ministério Público Militar (MPM). De acordo a Folha de S.Paulo, Miranda enviou um ofício a Bolsonaro e a alguns senadores questionando o formato de sucessão de Dodge.
Ele quer que integrantes de outras carreiras do Ministério Público da União (MPU) possam ser nomeados para o cargo. Até hoje, apenas integrantes do Ministério Público Federal (MPF) foram escolhidos. Além do MPF e do MPM, integram o MPU o Ministério Público do Trabalho e o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.
Quem também defende que a PGR não é uma exclusividade do MPF é André Mendonça, o advogado-geral da União. No mesmo encontro com jornalistas, ele afirmou que o cargo poderia ser ocupado por membros dos Ministérios Públicos do Trabalho, Militar e do DF. A divergência indica que a escolha do sucessor de Dodge pode parar na Justiça, mais especificamente no Supremo Tribunal Federal, cujos membros também podem ser processados pelo procurador-geral da República.
Além da possibilidade de o governo desprezar a lista tríplice e de integrantes de fora do MPF buscarem o cargo, a disputa pela sucessão de Dodge envolve disputas que ocorrem dentro do próprio MPF. A instituição estaria dividida entre alas que apoiam Dodge e outras alinhadas a seu antecessor, Rodrigo Janot.
O ex-procurador-geral Fonteles não apoiou Dodge na última eleição, mas elogia sua atuação desde 2017, quando assumiu o cargo de procuradora-geral da República. Para ele, as divisões dentro do MPF são preocupantes.
“Hoje há realmente uma busca por poder dentro da instituição, mas a resposta deve ser a unidade dentro da adversidade”, diz. O risco é a cisão facilitar uma eventual tentativa de não seguir a lista tríplice. “A norma deve obedecer até a boa tradição”, diz. “Mas hoje vejo com extrema preocupação a possibilidade de se desprezar a lista, como o presidente Fernando Henrique desprezou solenemente.”
Exportações impulsionam desmatamento no Brasil e Indonésia
Estudo afirma que um terço do CO2 liberado pelo desmatamento está ligado às exportações de commodities, como carne bovina, óleo de palma e soja, e questiona atual método de atribuição de emissões aos países.
A margarina que o cientista Martin Persson passa em seus sanduíches todas as manhãs não lhe tira o sono à noite – mas deixa uma leve sensação de culpa.
Persson, pesquisador da Universidade Chalmers, na Suécia, é vegano, mas ele sabe que seu inocente café da manhã ajuda a destruir florestas a cerca de dez mil quilômetros de distância.
Há muito se sabe que o óleo de palma presente na margarina e outros alimentos cotidianos, assim como a carne bovina e a soja, impulsionam o desmatamento em países como o Brasil e a Indonésia.
Mas agora, Persson e uma equipe internacional de pesquisadores calcularam quanto a demanda externa por commodities impulsiona essa destruição.
O estudo, publicado na semana passada, descobriu que de 29% a 39% do dióxido de carbono liberado pelo desmatamento é causado pelo comércio internacional, que leva agricultores a derrubar florestas para abrir espaço para plantações, pastagens e cultivos que produzam bens frequentemente consumidos no exterior.
Os autores escreveram que, em muitos países ricos, as emissões “embutidas” nas importações – relacionadas ao desmatamento – são maiores até do que as geradas pela agricultura local.
“Os responsáveis não são somente os consumidores dos países onde ocorre o desmatamento – isso também é causado por consumidores em outros lugares”, diz Ruth Delzeit, chefe de meio ambiente e recursos naturais do instituto de estudos econômicos IfW, de Kiel.
Isso é importante para contabilizar as emissões de CO2 e decidir a quem atribuí-las. “A ONU atribui as emissões aos países onde elas são produzidas”, comenta Jonas Busch, economista-chefe do Earth Innovation Institute, que luta contra o desmatamento e pela segurança alimentar em países como Brasil, Colômbia e Indonésia.
Na Alemanha, por exemplo, isso significa que as emissões de uvas cultivadas localmente são computadas como alemãs – mas não as emissões da margarina feita com o óleo de palma importado da Indonésia.
A destruição das florestas e matas da Terra, que retiram e armazenam o CO2 da atmosfera, é um grande obstáculo na luta para conter as mudanças climáticas. O problema se agrava ainda mais, dizem os especialistas, através de cadeias de fornecimento e produção complexas, que distanciam os consumidores dos danos decorrentes da fabricação dos produtos.
Para estimar as pegadas de carbono do desmatamento por país e mercadoria, a equipe de pesquisa na Suécia combinou dados do fluxo de comércio com imagens de satélite de mudanças no uso da terra entre 2010 e 2014. Eles não consideraram a perda florestal de atividades não agrícolas – como mineração, urbanização ou incêndios florestais naturais –, que causam cerca de 40% do desmatamento.
Na África, eles descobriram que quase todas as emissões relacionadas à destruição das florestas permaneceram dentro do continente. Mas, na Ásia e na América Latina, quantidades consideráveis do CO2 liberado através da queima e corte de árvores foram, na prática, exportadas para a Europa, América do Norte e Oriente Médio.
De quem é a responsabilidade?
As diferentes formas de contagem de emissões, ou no lugar onde o CO2 é emitido ou onde os produtos cuja produção o liberam são consumidos, levanta questões difíceis sobre de quem é a responsabilidade.
“Você poderia dizer que a União Europeia [UE] é apenas uma pequena parte do problema”, afirmou Persson, referindo-se à alta parcela de consumo que não deixou as regiões tropicais, mas que foi consumida domesticamente.
A maior parte das emissões de desmatamento teve origem apenas em quatro commodities: madeira, carne bovina, soja e óleo de palma. Na Indonésia e no Brasil, respectivamente o quarto e o quinto país mais populoso do mundo, o óleo de palma e a carne bovina têm enormes mercados domésticos.
Mesmo assim, a contribuição europeia é significativa, ressalva Persson. “Na UE, queremos reduzir nosso próprio impacto nas mudanças climáticas – e essa é uma parte importante do impacto causado por nós”.
Em clara discordância com a contagem tradicional do dióxido de carbono, os pesquisadores estimaram que cerca de um sexto do CO2 liberado por uma típica dieta europeia pode ser ligada ao desmatamento em regiões tropicais, por meio de produtos importados.
“Foi uma surpresa para mim”, comenta Persson. “Sim, importamos muita comida, mas a maioria dos alimentos que consumimos na UE é produzida internamente.”
O Brasil exportou um recorde de 1,64 milhão de toneladas de carne bovina em 2018, segundo dados da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec), um aumento de 11% comparado com 1,48 milhão de toneladas exportadas em 2017.
A Indonésia é a maior produtora mundial de óleo de palma, que está presente cada vez mais em produtos do cotidiano, como margarina, barras de chocolate, nutella, sabonetes e shampoo.
“O óleo de palma é uma das mais importantes commodities de exportação, então é possível rastrear os efeitos do desmatamento desse comércio, e isso tem um grande impacto na Indonésia”, diz o cientista Ahmad Dermawan, do Centro Internacional de Pesquisa Florestal (Cifor). .
Além de emitir CO2, a queima e a derrubada das florestas também podem causar deslocamento de pessoas, perda de habitat e inundações. No Brasil, terras indígenas estão ameaçadas por lavouras. Na Indonésia e na Malásia, mais de 100 mil orangotangos foram mortos desde 1999, de acordo com um estudo publicado no ano passado.
Consumo crescente
Os especialistas temem que o desmatamento e a destruição associada a ele continuem aumentando à medida que países emergentes se tornem mais ricos. A Índia já é o maior importador de produtos oleaginosos indonésios. A alta do ano passado nas exportações brasileiras de carne bovina, por sua vez, foi impulsionada por um aumento de 53% na demanda chinesa entre 2017 e 2018, segundo dados da Abiec.
“Podemos ver que as exportações para a Índia e a China aumentarão maciçamente no futuro [à medida que crescerem] sua renda per capita”, informa Delzeit. “Eles se aproximam das dietas ocidentais, o que inclui o aumento do consumo de carne.”
Isso tem efeitos para as nações mais ricas, que podem argumentar que sua contribuição para o desmatamento é proporcionalmente pequena.
“A UE e os EUA estabeleceram um padrão global que está sendo absorvido cada vez mais na China, na Índia e em outros mercados emergentes”, diz David Kaimowitz, diretor de recursos naturais e mudanças climáticas da Fundação Ford. “Se eles veem empresas ou países que importam muito desmatamento em seus produtos sendo criticados publicamente ou responsabilizados, isso não é passado para as suas próprias políticas.”
Os mercados de óleo de palma, soja e carne bovina são dominados por um pequeno grupo de multinacionais, algumas delas com sede na Europa e na América do Norte. “Se a UE puder pressioná-las a mudar suas práticas de produção, isso pode ter efeitos em outros países”, afirma Persson.
Mas uma recente decisão da UE de classificar o óleo de palma em biocombustíveis como insustentável, em parte devido a preocupações da opinião pública sobre o desmatamento, provocou temores de uma guerra comercial entre o bloco europeu e os dois maiores exportadores de óleo de palma do mundo, a Indonésia e a Malásia.
Esses países acusaram a UE de protecionismo por reprovarem o óleo de palma sem abordar as preocupações associadas ao cultivo de óleos vegetais menos eficientes, como a colza.
O ministro da Coordenação da Economia da Indonésia, Darmin Nasution, disse neste mês em Bruxelas ser irônico que a UE, que derrubou uma parcela muito maior de suas florestas, estivesse dando conselhos de gestão florestal a países ricos em árvores. Ele também apontou a contribuição do óleo de palma para o alívio da pobreza.
“O foco da perspectiva europeia é o desmatamento, a mudança do uso da terra e assim por diante”, observa Dermawan. “Mas, da perspectiva da Indonésia, trata-se de pequenos agricultores, desenvolvimento e meios de subsistência. Isso também deve ser discutido e contextualizado.”
Fiocruz desenvolve teste para diagnosticar zika em 20 minutos
Método desenvolvido em Pernambuco é 40 vezes mais barato que o convencional. Previsão é de que kit chegue a postos de saúde até o fim do ano, beneficiando principalmente cidades afastadas dos grandes centros.
Exames para identificar infecção pelo vírus zika devem em breve poder ser feitos em apenas 20 minutos. Pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Pernambuco desenvolveram um método simples e 40 vezes mais barato que o tradicional.
A expectativa é que ele chegue a postos de saúde até o fim do ano, beneficiando principalmente os municípios afastados dos grandes centros, onde o resultado do teste pode demorar cerca de duas semanas.
“Tendo em vista que a técnica atual (PCR) é extremamente cara e o Brasil tem poucos laboratórios de referência que podem realizar o diagnóstico de zika – até um tempo atrás eram apenas cinco, inclusive a Fiocruz de Pernambuco -, uma cidade pequena, no interior do estado, acaba prejudicada. A amostra precisa sair do interior, ir para a capital para ser processada, enfim, se pensarmos nesses municípios, o resultado pode demorar 15 dias”, destaca o pesquisador Jefferson Ribeiro, um dos criadores da técnica.
Outra vantagem do novo teste é que ele pode ser feito por qualquer pessoa nos posto de saúde, pois não exige treinamento complexo. Com um kit rápido, basta coletar amostras de saliva ou urina, misturar com reagentes em um pequeno tubo plástico e, em seguida, aquecer em banho-maria. Vinte minutos depois, se a cor da mistura ficar amarela, está confirmado o diagnóstico de zika, se for laranja, o resultado é negativo.
Hoje, o teste PCR, com reagentes importados, é feito com material genético retirado das amostras, o que demora mais. Além disso, o teste atual custa em torno de 40 reais, valor que deve baixar para 1 real com a nova técnica.
O teste elaborado pela Fiocruz Pernambuco é também mais preciso, apontando a doença mesmo em casos que não foram detectados pela PCR. A expectativa dos pesquisadores é que o kit seja desenvolvimento pela indústria nacional. O novo modelo foi desenvolvido no mestrado em Biociências e Biotecnologia em Saúde da Fiocruz.
A fase inicial do estudo, realizada com mosquitos, e não secreções humanas, foi desenvolvida pelo mestrando Severino Jefferson, com a orientação do pesquisador Lindomar Pena e a participação de outros pesquisadores da Fiocruz PE. Os resultados dessa etapa forampublicados ena revista Nature – Scientific Reports.
O número de casos de zika vem diminuindo nos últimos anos. No entanto, o Brasil ainda teve 8.680 diagnósticos em 2018 (em 2017 foram 17.593), com maior incidência nas regiões Norte e Centro-Oeste. O vírus é transmitido principalmente por picadas de mosquito, mas também durante a relação sexual desprotegida e de mãe para filho, na gestação. Provoca complicações neurológicas como a microcefalia e a Síndrome de Guillain Barré.
Fonte: DW
Como seria a “barganha judicial” defendida por Moro
Um dos pontos do pacote anticrime prevê a possibilidade de acusado ser declarar culpado para não se submeter a longo processo e ter pena mais branda. Na Alemanha e nos EUA, modelos similares estão sob escrutínio.
De um lado a acusação querendo evitar um longo processo. Do outro, o réu com o intuito de diminuir a pena. A fórmula para um acordo, em teoria, parece simples, mas gera debates em diferentes sistemas jurídicos.
Previsto no pacote anticrime, bandeira do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, o instrumento de negociação de pena conhecido como “plea bargain” (pedido de barganha) já existe em formatos similares nos Estados Unidos e na Alemanha, onde os resultados são questionados por juristas. No Brasil, também é inicialmente visto com cautela por especialistas consultados pela DW.
O que o projeto de Moro prevê é uma solução negociada entre acusado e acusadores. Nesta “barganha”, o réu pode se declarar culpado após ser denunciado para não se submeter a um longo processo. Ele cumpre exigências como devolução de dinheiro fruto do crime e prestação de serviço comunitário, e tem a pena reduzida até a metade, dependendo do acordo.
Nesse modelo que o ministro do presidente Jair Bolsonaro tenta impulsionar, os promotores, além disso, não precisam colher provas para acusação, e a negociação ainda permite a aplicação de pena privativa de liberdade.
Diferente da delação
Um dos objetivos da proposta de acordo, segundo Sérgio Moro, é acelerar soluções judiciais e assim diminuir despesas da Justiça com longos processos criminais. Para alguns juristas, esse tipo de solução pode estar apenas transferindo a despesa de pagador.
“O ‘plea bargain’ resulta em mais casos solucionados, mas isso não necessariamente em economia. Você vai ter casos terminando mais rápido, mas também terá pessoas sendo encarceradas mais rápido e isso provoca um custo ao sistema prisional. Basta ver o que acontece nos EUA, que têm a maior população carcerária do mundo e é onde mais de 90% são concluídos com acordo judicial”, diz Fabio Roberto D’Avila, advogado criminal e professor titular da Escola de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUC-RS.
Outro ponto abordado por D’Avila é que um modelo de negociação na Justiça brasileira possa pressionar pessoas inocentes a procurar acordos.
“O acordo é um instituto estranho à tradição jurídica brasileira e isso interfere no modo como o sistema processual é pensado. Ademais, o sistema penal brasileiro é muito instável. É difícil prever o resultado de uma ação. Nesse cenário, um acordo torna-se mais conveniente para o sujeito culpado do que para o inocente. O culpado vai fazer o acordo. O inocente, por sua vez, terá diante de si uma difícil decisão: tentar provar a sua inocência, correndo o risco de sofrer pesadas penas, em caso de insucesso, ou submeter-se ao acordo embora sem ter culpa”, diz D’Avila.
O modelo proposto por Moro é diferente da colaboração premiada, bastante usada nas investigações da operação Lava Jato. Na negociação por barganha o réu pode ser poupado de uma denúncia, algo que não ocorre na colaboração premiada, quando o réu ainda precisa delatar outras pessoas envolvidas.
“A principal diferença é que na colaboração premiada, além de confessar, o colaborador tem que ajudar na investigação, dando informações a respeito de outras pessoas envolvidas na atividade criminosa e auxiliando na recuperação do dinheiro desviado ou no resgate de uma vítima, por exemplo. No ‘plea bargain’, o que se busca é simplesmente dar celeridade e eficiência ao julgamento, de modo que basta o réu confessar seu próprio crime para receber um benefício. Em razão dessa diferença, na colaboração o acusado pode receber um ‘prêmio’ maior do que no plea bargain”, explica Felipe De-Lorenzi, doutorando em Ciências Criminais pela PUC-RS, com estágio de pesquisa na Universidade Humboldt, de Berlim.
Apoio de juízes
Para De-Lorenzi, não fica claro no projeto se o Brasil seguirá o modelo americano. Ele opina que ainda falta discutir mais o projeto com a sociedade.
“Acredito que deve haver uma discussão mais ampla e longa sobre o acordo, em que sejam chamados para debater acadêmicos, juízes, promotores e advogados e em que sejam analisadas as experiências internacionais e os dados empíricos. A incorporação do acordo ocasionará uma mudança estrutural grande em nosso sistema, cujas consequências são difíceis de prever. Portanto, o debate deve ser feito com muita calma e cuidado”, afirma o doutorando em Ciências Criminais pela PUC-RS.
Apesar das críticas de juristas, a proposta de implantação do modelo de negociação em ações penais recebe apoio de juízes no Brasil. Uma pesquisa recente feita pela Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) mostrou que cerca de 90% dos juízes do país apoiam a iniciativa de incorporar o “plea bargain” no Código de Processo Penal (CPP).
Um acordo de não persecução, quando não há denúncia criminal, já era citado por um projeto de lei (PL 10372/2018) que tramita na Câmara desde junho do ano passado, este apresentado por uma equipe de juristas, incluindo o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes.
Há algumas similaridades entre os dois projetos. No projeto atual é permitido o acordo sem denúncia para casos criminais em que a pena máxima não seja acima de quatro anos. O projeto de Moraes envolve casos com pena mínima até quatro anos quando, ambos os casos quando não houver violência ou grave ameaça à vítima.
Em março, no meio de uma crise entre Planalto e Câmara, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), usou a semelhança entre os projetos para criticar publicamente Moro. Ele chamou o projeto do ex-juiz de “copia e cola” da proposta do ministro Alexandre de Moraes.
O pacote já era alvo de pressões no Congresso e por isso foi apresentado sendo repartido em três projetos. Um com alterações no Código Penal, que prevê o plea bargain; o segundo tipificando crime de Caixa 2; e um terceiro determinando que o julgamento de crimes comuns conexos ao processo eleitoral seja realizado pela Justiça comum.
Os acordos nos EUA e na Alemanha
Esse modelo de negociação em processos criminais tem origem no sistema jurídico americano. Nos EUA, a maior parte dos processos criminais não chega a ir a julgamento, são resolvidos com acordos.
Já na Alemanha, por exemplo, esse tipo de acordo é aplicado de forma diferente dos EUA. Os dois países diferem sobre como o crime praticado pode ser negociado, explica o advogado alemão Uriel Möller, doutor e pesquisador de direito penal que estuda acordos na Justiça.
“Na Justiça alemã, o fato não pode ser negociado. Por exemplo, um crime de latrocínio não pode ser tratado como roubo por promotoria e acusados. Isso seria uma distorção não apenas da Justiça, mas da verdade. Nos EUA se discutem os fatos”, diz Möller, que ainda cita que na proposta brasileira não fica claro se o tipo de crime pode ou não ser negociado.
Incluído na legislação alemã desde 2009, o “plea bargain” foi confirmado quatro anos depois pelo Tribunal Constitucional. Isso não impediu que o modelo de encerramento de processos por negociação não sofresse críticas.
Em 2014 a Justiça do estado da Baviera fez um acordo com o então chefão da Fórmula 1, Bernie Ecclestone, acusado de subornar o funcionário de um banco num negócio sobre a venda dos direitos comerciais da modalidade. Ele pagou multa de 100 milhões de dólares e ficou livre de acusação e qualquer outro tipo de punição.
Na época, a ex-ministra da Justiça da Alemanha Sabine Leutheusser-Schnarrenberger chegou a chamar o caso de “descaramento”. A idade avançada de Ecclestone, então com 83 anos, e a dificuldade de obter provas concretas do suborno fizeram a promotoria optar por um acordo. Para juristas e opinião pública, a multa não serviu de pena ao bilionário.
Críticas a esse modelo e também a falta de controle sobre os acordos fizeram com que o Ministério da Justiça da Alemanha iniciasse uma ampla pesquisa com juízes, promotores, advogados e sociedade sobre o “plea bargain”. Desde junho de 2018, pesquisadores de três universidades alemãs (Düsseldorf, Frankfurt e Tübingen) coletam material de entrevistas e analisam juridicamente como acordos em casos criminais são aplicados. A coordenação da pesquisa informou à DW que os primeiros resultados devem ser divulgados em junho do ano que vem.
Fonte: DW
Governo propõe mínimo de R$ 1.040
A equipe econômica do governo Bolsonaro sugeriu o fim do aumento real do salário mínimo, que vinha sendo praticado desde 2011 pela política de valorização do mínimo instituída pela presidente Dilma Rousseff. O índice de reajuste do mínimo para os anos de 2020, 2021 e 2022 consta no PLDO 2020 (Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias), apresentando nesta segunda-feira (15) pelo Ministério da Economia.
A LDO ainda terá que ser aprovada pelo Congresso. A partir do ano que vem, o salário mínimo deve ser reajustado apenas pelo INPC, índice de inflação do ano anterior. Neste ano, o mínimo está em R$ 998. Pela proposta do governo, em 2020 o salário mínimo será de R$ 1.040, isso com a previsão do INPC para 2019 de 4,2%.
Alckmin vira réu por improbidade administrativa
O juiz federal Alberto Alonso Muñoz, da 13ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, abriu ação de improbidade administrativa contra o ex-governador Geraldo Alckmin, seu ex-tesoureiro de campanha Marcos Monteiro, a Odebrecht, e quatro de seus ex-executivos no caso que envolve supostos R$ 7,8 milhões para a campanha do tucano, em 2014. O magistrado também determinou o bloqueio de R$ 39,7 milhões dos investigados.
Ao oferecer ação civil pública contra o ex-governador, o promotor do Patrimônio Público e Social – braço do Ministério Público de São Paulo – Ricardo Manuel Castro apontou nove supostas entregas de dinheiro em hotéis de São Paulo para a campanha do tucano em 2014.
Museu dos EUA rejeita sediar homenagem a Bolsonaro
O Museu de História Natural dos Estados Unidos, em Nova York, anunciou nesta segunda-feira (15) no Twitter que não sediará mais a homenagem ao presidente Jair Bolsonaro, que estava agendada para maio. Bolsonaro foi escolhido para receber o prêmio “Personalidade do Ano” da Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos, em jantar de gala, em 14 de maio.
“Com respeito mútuo pelo trabalho e pelos objetivos de nossas organizações individuais, concordamos em conjunto que o Museu não é o local ideal para o jantar de gala da Câmara de Comércio, que será realizado em um outro espaço”, afirmou a instituição em nota na rede social. Desde a semana passada, o museu tem sido alvo de críticas pela homenagem ao brasileiro, principalmente por posições sobre políticas para o meio ambiente.
O caótico início de Governo de Bolsonaro
Ultradireitista completa cem dias no comando da maior potência econômica da América Latina com uma gestão errática, dois ministros destituídos e divisões no Gabinete
Na cerimônia para comemorar seus 100 dias no poder, na última quinta-feira, o Presidente do Brasil se orgulhou de conquistas, agradeceu sua equipe e fez uma confissão: “De vez em quando pergunto a Deus, o que eu fiz para estar aqui?”. É provável que algum outro mandatário já se tenha feito essa pergunta, o que chama a atenção é que o líder do quinto país mais populoso do mundo, da maior potência econômica da América Latina, o faça. Essa franqueza entusiasma seus fiéis. Mas Jair Bolsonaro já havia respondido dias antes, em uma entrevista, quando atribuiu a seu filho Carlos, apelidado de Pitbull, o mérito de sua aterrissagem no elegante Palácio do Planalto.
“Ele que me colocou aqui. Foi a mídia dele que me botou aqui”, admitiu o militar reformado e veterano deputado. Bolsonaro é sem dúvida o presidente mais atípico do Brasil desde o final da ditadura. Não só porque o Facebook foi essencial na vitória do ultradireitista, e sim porque preside um Governo dividido em grupos cuja trajetória iniciada em 1 de janeiro tem sido errática, com divisões internas, estridente nas formas e com cargas de profundidade contra as instituições.
Em somente três meses, o presidente destituiu dois ministros e causou indignação dentro e fora do Brasil por encorajar o Exército a comemorar o golpe de Estado de 1964 e afirmar, em Israel, que “não há dúvidas de que o nazismo foi um movimento de esquerda”. Historiadores alemães, entre outros, o desmentiram.
E enquanto procura apoio parlamentar para que seus dois grandes projetos – a reforma da insustentável Previdência e as leis para combater o crime e a corrupção – avancem no Congresso dividido, o Brasil fez novos amigos na arena internacional. Mas a economia continua em crise enquanto a oposição está desaparecida e o presidente se empenha em destruir a credibilidade da imprensa e das próprias instituições do Estado.
Capital dilapidado
O nacional-populista começou com enorme capital político graças a sua contundente vitória e à enorme confiança dos mercados. Mas o dilapidou até se transformar no presidente com pior avaliação no primeiro trimestre, de acordo com o Datafolha. O Governo é ruim ou péssimo para 30%, regular para 33% e bom ou ótimo para os outros 32%. Seus eleitores o elegeram porque encarnava uma mudança radical. Acreditaram que mudaria o sistema e ressuscitaria a economia, mas o começo foi acidentado. Em um país obcecado por quantificar tudo, a imprensa se encheu de balanços. O jornal Globo afirma que o presidente cumpriu integralmente 18 e parcialmente 17 de suas 35 promessas para os 100 primeiros dias. De facilitar a posse de armas ao pagamento do 13° para 13 milhões de família pobres que recebem o Bolsa Família.
Expectativas
Para 60% dos entrevistados pelo Datafolha, ele fez menos do que o esperado. Ao analisar até que ponto cumpriu as expectativas, a professora Tassia Cruz da Fundação Getúlio Vargas divide seus eleitores em três grupos. “Para os que o elegeram porque não era o PT de Lula, com um desejo de renovação política, de separar a Presidência dos escândalos de corrupção, de ter um Governo de técnicos e políticas públicas eficazes, certamente ele não esteve à altura”, diz. Os atraídos por sua agenda liberal na economia “ainda têm esperanças de uma melhora”, acrescenta. Mas a especialista afirma que Bolsonaro governa para o terceiro grupo, os que abraçam seu discurso sem questionamentos. “Ainda que representem uma minoria de seus eleitores, são os mais barulhentos nas redes sociais gerando uma imagem de satisfação com o desempenho do presidente”. Aí está a mão hábil de seu filho Carlos, o estrategista na Internet, onde o presidente tem 26 milhões de seguidores entre uma população presa ao universo paralelo das redes. Seu agradecido pai diz que ele merece um ministério.
Economia
É o terreno em que se disputa a batalha crucial. E do qual o presidente não faz a menor ideia. “Não sou economista, já disse que não entendo de economia”, admitiu na sexta-feira após sua intervenção para que a Petrobras não subisse o preço do diesel, por medo de que os caminhoneiros paralisassem o país, fazer com que a empresa estatal perdesse 32 bilhões de reais na Bolsa. É o clássico desatino de Bolsonaro. Após uma breve recessão, a economia cresce, mas fracamente. O mandato presidencial começou com uma sucessão de recordes na Bovespa e privatizações iniciais, mas esse otimismo não se traduziu em melhoras tangíveis à população. O desemprego subiu para 12,4% enquanto se sucedem as diminuições nas previsões de crescimento econômico. A última, do Itaú, o maior banco privado, de 2% a 1,3% para 2019.
Disputas com o Congresso
Um discurso raivoso, nostálgico da ditadura, homofóbico e racista deu fama a Bolsonaro, mas ele só teve duas leis aprovadas em três décadas. Com somente 54 deputados, precisa forjar maioria importante em um Congresso com 513 integrantes para aprovar a nova Presidência, vital para sanear as contas públicas e fazer com que a economia volte a crescer com força. Bolsonaro, que parece ter melhor instinto do que visão estratégica, logo se chocou com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que o acusou de acreditar que “governar o Brasil é brincadeira de criança”. O outro projeto fundamental é o criado pelo juiz Sérgio Moro, o mais popular do Gabinete, para acabar com a insegurança e a corrupção.
Novos amigos
O capitão reformado, cujo lema é “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, se alinhou com os EUA e Israel além de exigir o fim do chavismo na Venezuela. Uma revolução para uma diplomacia conhecida por sua sutileza. Bolsonaro pode se orgulhar dos acordos que conquistou em sua visita a Donald Trump, mas por enquanto não mudará a Embaixada para Jerusalém.
Família
Os Bolsonaro são um clã com três filhos estrategicamente situados em diversos Legislativos. A enorme influência de Carlos e seus irmãos no patriarca causou importantes brigas dentro do Gabinete com humilhantes gestos públicos. Foi Eduardo, deputado e ligação com o movimento nacional-populista, e não o ministro das Relações Exteriores, que esteve no Salão Oval com os presidentes Bolsonaro e Trump. Flávio, o primogênito, é o flanco pelo qual aparecem as suspeitas de corrupção porque o também senador é investigado por receber pagamentos irregulares. E ligações suspeitas com as milícias do Rio rondam a família há anos.
Barulho
As polêmicas pelo que diz e faz são cotidianas. Envergonhou parte de seus compatriotas com um vídeo vulgar de Carnaval, repassou uma acusação falsa contra uma jornalista feita pelos bolsonaristas na Internet, no Dia da Mulher disse que seu Governo era igualitário mesmo com somente duas mulheres entre seus 22 ministros… Cem intensos dias que incluíram até mesmo uma operação cirúrgica.
Fonte: El País
Rio dos bois, uma cidade que vive à espera de um médico
Município do Tocantins que ganhou primeiro médico na atenção básica com o Mais Médicos volta à situação de cinco anos atrás, após desistência de profissional que substituiu cubano
A cidade de Rio dos Bois, no Tocantins, revive uma situação que parecia ter superado há cinco anos: a falta de um médico fixo e o atendimento diário. Localizada a 123 quilômetros da capital Palmas, o município ganhou seu primeiro médico na atenção primária ao aderir ao Mais Médicos e, com o programa federal, passou a ofertar atendimento nos cinco dias úteis da semana para seus 2.800 habitantes no único posto de saúde da cidade. Foi uma conquista, embora o município seguisse distante de atingir o parâmetro de atenção considerado ideal pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que é de um profissional para cada mil habitantes.
Quando Cuba decidiu encerrar a cooperação com o Brasil, em novembro passado, a cidade perdeu o médico cubano que atendia no posto, mas chegou a ter a vaga substituída por uma profissional brasileira. Três meses depois de começar a trabalhar, a médica renunciou ao programa, segundo funcionários da saúde do município, porque passou em um concurso em Goiânia — abriu-se, assim, uma das 1.052 vagas ociosas por desistências no Brasil que foram anunciadas pelo Ministério da Saúde. A vaga ainda não foi reposta, e já faz dois meses que Rio dos Bois oferece atendimento médico apenas dois dias na semana. Isso porque o município, que já financiava um plantonista para atender no único dia útil em que o profissional “titular” era liberado para atividades de formação previstas no programa, dobrou a carga horária dele.
“Como tem dia que não tem médico aqui, quando a gente tem uma dor mais forte vai mais é pra Miracema [a cidade vizinha, que fica a 47 quilômetros de Rio dos Bois]. Lá é mais certo ter médico, e eles passam um remédio pra passar a dor”, diz o morador Milton Medeiros de Morais, 27 anos, que trabalha na limpeza de um posto de gasolina do município. Ele conta que os profissionais do posto de saúde atendem bem aos pacientes, mas lamenta que só tenha médico nas quartas e quintas. “O atendimento tá um pouco apertado depois que a médica saiu, mas pelo menos o município de referência fica perto”, afirma uma funcionária da saúde municipal, que não quis ser identificada, ao explicar que Rio dos Bois disponibiliza ambulâncias e carros pequenos para levar até Miracema os pacientes cujos casos não podem ser resolvidos ali. “Graças a Deus pelo menos ambulância a gente tem e basta ligar que a gente consegue ir [para Miracema]. Por que médico aqui não é todo dia”, declara Milton.
Ainda assim, ele conta que só se submete a esta viagem — que dura em média 45 minutos — em casos mais graves e que se acostumou a usar plantas medicinais e chás para cuidar da própria saúde. “Eu tomo mais é remédio do mato. Todo dia eu faço uma garrafadinha [com mel e plantas] e tomo um pouquinho. Tem uns pezinhos de planta na minha casa, pense como é bom”, diz. O morador tem uma doença nos rins, mas diz que reduz as idas ao médico porque pode comprar os remédios que toma regularmente na farmácia com o salário que ganha na limpeza do posto de gasolina. Algo que nem todos da cidade podem fazer, já que quase metade da população (46%) vive com menos de meio salário mínimo — 499 reais — por mês, segundo dados do IBGE.
Os indicadores de saúde de Rio dos Bois também não são animadores. A taxa de mortalidade infantil média na cidade — de 22,73 óbitos para 1.000 nascidos vivos — é bem maior que a média nacional — de 14. Além disso, as condições urbanas não ajudam: apenas 2,5% dos domicílios têm esgotamento sanitário adequado, uma estrutura importante para evitar doenças como diarreia, hepatite A e verminoses, que são enfermidades geralmente tratadas e prevenidas justamente com a ajuda dos profissionais da atenção básica.
O EL PAÍS entrou em contato com a Secretaria de Saúde de Rio dos Bois para saber os impactos da ausência de médico fixo na cidade, mas a secretária Maria Vitalina não quis dar entrevista, afirmando que havia outros municípios na mesma situação. Ela se limitou a explicar que seria mais adequado conseguir as informações com a coordenação do Mais Médicos no Tocantins. Esta, por sua vez, afirmou que havia previsão de a vaga de médico ser ocupada na próxima semana por um profissional remanejado de outra cidade, mas não especificou qual era. O Ministério da Saúde também não confirmou essa reposição.
Pelo menos outras 18 cidades, localizadas em nove Estados diferentes, estão sem médicos na atenção básica por conta da desistência dos brasileiros que substituíram os cubanos no programa federal. Os dados são de um levantamento feito pelo EL PAÍS ao cruzar a lista de municípios com desistência disponibilizada pelo Ministério da Saúde com a lista de cidades que dependem exclusivamente do programa feita pelo Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems). A estimativa do Conselho considera municípios que têm apenas uma Equipe de Saúde da Família (ESF) participante do programa cujo médico responsável por ela até novembro era cubano.
O presidente do Conasems, Mauro Junqueira, diz que o provimento das vagas está garantido por lei e que o ministro Luiz Henrique Mandetta teria prometido a reposição nas cidades vulneráveis ainda no mês de abril. “A ideia é que seja já dentro do [novo programa] Mais Saúde, mas ainda não conhecemos a proposta como um todo”, afirma. Mandetta anunciou que enviaria ao Congresso uma nova proposta para substituir o Mais Médicos ainda neste mês.
Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que lançará o Mais Saúde “em algumas semanas”, mas ressaltou ter publicado uma portaria estendendo para seis meses o prazo de pagamento da verba para custeio de outros profissionais das unidades básicas de saúde para que os municípios não perdessem verba após dois meses sem médico, como determinava a portaria anterior. O Ministério paga 11.800 reais de salário dos médicos pelo programa e repassa 4.000 para ajudar no custeio das equipes que contam com esses profissionais. “Essas localidades que perderam profissionais do Mais Médicos poderão utilizar os recursos também para contratar seus próprios médicos”, sugere a pasta.
Uma conta difícil de fechar
Mas a desistência dos brasileiros não é o único buraco no programa. Antes de o Governo cubano retirar os médicos do país, descontente com as condições impostas pelo presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), já havia vagas ociosas. Além disso, a finalização de contratos anteriores também abriu novas vagas, já que o Governo federal renovou os contratos apenas dos profissionais das cidades mais vulneráveis — uma política que pretende seguir na reposição daqui em diante. Os cerca de 1.400 brasileiros formados no exterior que escolheram as vagas do último edital deveriam ser homologados a última sexta.
O Conasems estima que, considerando apenas os cenários das desistências dos brasileiros e das vagas que já estavam ociosas antes da saída dos médicos cubanos, há mais de 2.000 vagas desassistidas em todo o país. “É natural isso de o profissional assumir o compromisso e mudar de ideia. Faz parte, mas o Ministério está discutindo um novo formato de chamamento público, em que seja possível ter tipo um cadastro reserva, para chamar outro profissional mais rápido, sem a necessidade de um novo edital. Isso vai nos dar mais tranquilidade”, explica Junqueira.
Há um impasse no debate entre os municípios e o ministro sobre a reposição: Mandetta já afirmou que só vai chamar médicos para as cidades que se enquadrarem nos níveis de maior vulnerabilidade porque entende que capitais e cidades da região metropolitana não necessitariam do programa. Os dirigentes municipais não concordam. “O direcionamento do Mandetta está correto dentro dos parâmetros desenvolvidos por lei, de repor em áreas mais vulneráveis. Mas as capitais têm sim áreas de muita vulnerabilidade. Estamos tentando convencê-lo de que devem ser observadas os bolsões de pobreza desses locais”, afirma Junqueira.
CIDADES SEM MÉDICO FIXO NA ATENÇÃO BÁSICA
Moiporá (GO)
Albertina (GO)
Carmésia (MG)
Wenceslau Braz (PA)
Frei Martinho (PB)
João Costa (PI)
Carlos Gomes (RS)
Doutor Ricardo (RS)
Eugênio de Castro (RS)
Sério (RS)
Alto Bela Vista (SC)
Maracajá (SC)
Rancho Queimado (SC)
Charqueada (SP)
Dumont (SP)
Oscar Bressane (SP)
Ipueiras (TO)
Santa Maria do Tocantins (TO)
Rio dos Bois (TO)
Da proibição à obrigação, o futebol feminino desafia os clubes brasileiros em 2019
Para este ano, CBF e Conmebol obrigam os principais times do país a formarem time adulto e categorias de base. São Paulo contrata Cristiane, da seleção brasileira
“Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza”. A frase está no artigo 54 do Decreto-lei 3199, de abril de 1941, época em que Getúlio Vargas governava o país de forma autoritária através do Estado Novo. Naquele ano, enquanto o futebol masculino brasileiro funcionava de forma profissional há quase uma década e a seleção já havia participado de três Copas do Mundo, a modalidade feminina tinha sua prática proibida por lei, com o Conselho Nacional de Desportos – criado pelo mesmo decreto – se baseando em argumentos supostamente científicos a respeito das “condições de natureza” das mulheres. A proibição só foi abolida em 1979, no período final da ditadura seguinte, comandada pelos militares.
Quarenta anos depois da permissão, o futebol feminino deu seu passo mais ousado no Brasil: a partir de 2019, todos os clubes da série A do campeonato brasileiro são obrigados pela CBF a terem uma equipe feminina adulta e uma de base, que disputem ao menos um campeonato oficial. A medida faz parte do Licenciamento de Clubes, documento que regula a temporada de competições profissionais no país, e segue a orientação da Conmebol, que adota a mesma regra para clubes participantes de Libertadores e Sul-Americana. Ao mesmo tempo em que visa aumentar a visibilidade da modalidade, trazendo os clubes mais populares do país para a categoria, a medida também coloca à frente da maioria dos cartolas brasileiros o desafio de tornar rentável um departamento de futebol que, até agora, traz mais déficits do que lucros. “Era uma necessidade do futebol feminino. Criamos duas divisões adultas (a primeira com 16 times e a segunda com 36) e uma de base, o que dá condições aos clubes de terem competições de bom nível”, justificou a CBF através de seu diretor de competições, Manoel Flores.
Dos 20 clubes da série A obrigados a formar equipe feminina adulta, seis jogarão o campeonato brasileiro A1 2019, a elite do futebol feminino no país. Destes, três têm projetos próprios consolidados há mais de uma temporada: Santos, Corinthians e Internacional. O time do Flamengo funciona em parceria com a Marinha do Brasil desde 2015. Os outros dois, Athletico Paranaense e Avaí, ganharam a vaga por se fundirem com equipes que já estavam na primeira divisão – Foz Cataratas, do Paraná, e Kindermann, de Santa Catarina, respectivamente –, motivados pela regra da CBF. Vasco, Chapecoense e Grêmio também têm projetos próprios formados há mais de um ano, mas jogam o campeonato brasileiro A2, a segunda divisão; que, por sua vez, também acolhe outros nove clubes entre aqueles obrigados. Apenas CSA, Fortaleza e Goiás, que estão na primeira divisão masculina, disputarão somente o campeonato estadual feminino neste ano.
Clubes optam por parcerias ou investimento próprio
Em suma, 13 dos 20 clubes precisaram iniciar suas equipes de futebol feminino adulto em 2019. Como é necessário investimento para a criação de um projeto próprio, mais da metade optou por fechar parcerias com times já formados. O Atlético Mineiro, por exemplo, formou o time com a ajuda do Prointer Futebol Clube, equipe amadora de Belo Horizonte. “Precisávamos encaixar o projeto dentro do orçamento e ainda ter um viés social, de ajudar essas meninas. Não poderíamos começar nos moldes do masculino”, comenta Nina Abreu, coordenadora do futebol feminino atleticano. Ela destaca que o clube foi “nobre” ao se preocupar mais em incentivar a modalidade do que ter resultados em campo. “Mas o clube pode acabar refém de outras entidades”, rebate Roberto Moreira, diretor de esportes olímpicos do Fortaleza e responsável pelo departamento feminino do time. “Se existe o risco de romper a parceria, é o nome do clube que fica exposto. Melhor investir de forma a tornar o projeto viável a longo prazo”. O clube cearense teve propostas de parcerias, mas preferiu montar um time com dinheiro próprio, mesmo que jogue apenas o campeonato estadual no primeiro ano de obrigatoriedade.
A maioria das parcerias funciona com o clube grande fornecendo estrutura em troca de contratos com as atletas que jogam no projeto parceiro. Isso porque, hoje, trazer jogadoras de bom nível é uma dificuldade para quem precisa formar equipe no Brasil. “Existe uma escassez de jogadoras para suprir a demanda de todos os clubes”, explica Alessandro Rodrigues, gerente executivo de futebol feminino do Santos. A equipe alvinegra, que montou um projeto vitorioso de 2008 a 2012 e tem a modalidade profissional funcionando desde 2015 ininterruptamente, é uma das maiores referências no Brasil. Rodrigues faz uma ressalva: “Alguns modelos de parceria podem funcionar muito bem, como o Flamengo com a Marinha. Mas eu prefiro que o clube se aproprie da estrutura para montar uma equipe própria”.
Rodrigues garante que, pela estrutura e tradição do Santos, o licenciamento da CBF pouco influencia no compromisso do clube com a categoria, que seguirá independente da regra. O São Paulo, outro exemplo paulista, montou um time adulto apenas em 2019, mas se planeja desde 2017 com alojamento, centro de treinamento e a contratação de Cristiane, da seleção brasileira – o suficiente para, segundo a diretoria, provar a continuação do projeto mesmo se a obrigatoriedade for cancelada no futuro. No entanto, nem todos desfrutam da mesma situação econômica: o Botafogo feminino iniciou as atividades no dia oito de março, com a contratação da gerente Rose de Sá, apenas 23 dias antes da estreia no campeonato brasileiro. “É sabido que existe um problema financeiro nesse clube. O atraso foi pela falta de verba”, confessa Rose.
Mais popularidade, mais cobranças
Na estreia, o Botafogo foi derrotado por 3 a 1 para o Vila Nova, do Espírito Santo. O resultado mais expressivo nas estreias dos clubes mais populares ficou por conta do Atlético Mineiro, que perdeu por 6 a 0 para a Portuguesa. Nina Abreu, ciente da qualidade das meninas oriundas do time amador, classifica o resultado como “dentro dos planos”. “Sei que o time não vai ter retorno no Brasileirão porque não é competitivo. Ainda assim acendeu uma luz vermelha no Atlético, que passou a se preocupar com as condições competitivas. Me autorizaram a trazer reforços”. Se a entrada dos clubes de camisa populariza o futebol feminino, o relato da coordenadora demonstra que a maior audiência também pode trazer cobranças de resultados à diretoria da equipe.
A botafoguense Rose conclui elogiando a medida de CBF e Conmebol, afirmando que o crescimento do futebol feminino “não tem volta”, apesar das dificuldades financeiras. Medeiros, do Fortaleza, e Nina, do Atlético, convergem ao classificar a obrigatoriedade como necessária. “Era urgente. Não tem como desamparar o gênero”, diz a atleticana. “Só que eu posso obrigar o clube a ter o futebol feminino, mas não a acreditar no futebol feminino”, opina o santista Rodrigues. “Se fizerem só pela obrigação, não vai acrescentar muito não”.
Fonte: El País