“O livro não descreve um mito a prova de toda fraqueza mas um Lula humano, demasiadamente humano, até, algumas vezes, apanhado em momentos de dor, sofrimento e dúvida”, escreve Paulo Moreira Leite sobre a biografia do ex-presidente Lula, escrita pelo jornalista Fernando Morais

Com a competência de um repórter que já produziu um conjunto de trabalhos de extrema utilidade para o entendimento do país e nossa época  — Olga, Chatô, Montenegro, A Ilha –, Fernando Morais chega às livrarias com o primeiro volume de “Lula”, biografia prevista para dois volumes.

O livro possui 447 páginas, que se atravessa sem dificuldade, graças a reconhecida  competência do autor em debater questões graves e situações complexas em linguagem clara e sem rodeios.

Capaz de consultar fontes e personagens para depoimentos em primeira mão, além de descrever cenas e situações que muitas vezes acompanhou como testemunha ocular,  Fernando Morais produz o relato de um repórter ocupado com os fatos, os fatos e apenas os fatos. A partir deles sustenta suas opiniões e uma visão de mundo que jamais será escondida do leitor.

Dividido em 17 capítulos, o livro cobre tempos distintos da vida de Lula. Os primeiros capítulos narram sua prisão sob as ordens de Sérgio Moro e a vida na prisão da Polícia Federal em Curitiba, encerrando-se com as revelações de Walter Delgatti, que colocaram a Lava Jato sob suspeita.

Na última parte, Fernando Morais focaliza outro tempo histórico, com décadas de antecedência. Localiza Lula numa de suas grandes decepções — a campanha de 1982, quando imaginava-se favorito na eleição para governador de São Paulo, mas acabou num distante quarto lugar.

O livro não descreve um mito a prova de toda fraqueza mas um Lula humano, demasiadamente humano, até, algumas vezes, apanhado em momentos de dor, sofrimento e dúvida.

A grandeza histórica do personagem, no entanto, funciona como o fio condutor de uma narrativa em torno de um processo que mudou o Brasil nas últimas décadas, quando o país ousou saltos impensáveis em busca de horizontes  que desafiam as potencias do mundo e a sabedoria convencional.

Profissional como mais de meio século de profissão, Fernando Morais acompanhou assembléias sindicais nos anos finais da ditadura, participou pessoalmente de conversas descontraidas nos restaurantes de frango assado nas vizinhanças de São Bernardo, além frequentar o sobradinho modesto onde Lula vivia com Marisa Letícia e os filhos.

O livro lembra a greve  de 1978, primeira após uma década de silêncio imposto pela ditadura de 64, e faz um relato por dentro da  greve do ano seguinte, uma mobilização gigantesca que abriu um novo período na história do país, quando a luta popular abriu passagem para o fim do regime militar.

O livro descreve uma noite inesquecível na qual o movimento daqueles operários enfrentou — e venceu — uma prova de força para o futuro político do país. Depois que uma assembléia gigantesca (“Trinta mil? 40 mil pessoas? Cada um calculava a seu gosto”, escreve) havia aprovado um pedido de reajuste salarial, era preciso garantir que, fábrica por fábrica, a paralisação também fosse aprovada.  Numa noite dramática, “que parecia criança esperando Papai Noel na noite de Natal”, nas palavras de Lula, os informantes foram se revezando no microfone, fábrica por fábrica, até que “desembestou. A paralisação se estendeu por várias cidades fabris do estado”.

Ao contar a história do Partido dos Trabalhadores,  Fernando Morais faz justiça a Mário Pedrosa, intelectual e militante trotskista, queimado na fogueira de vaidades acadêmicas que acompanha as narrativas sobre a construção do partido. “O número 1 do mundo acadêmico a aderir ao partido de Lula foi Mário Pedrosa,” escreve. “Não apenas endossou a criação do PT mas tornou-se um propagandista do que considerava ‘algo que nunca existiu no Brasil, operários construindo seu próprio partido”.

Descrevendo o cotidiano de Lula na cela de Curitiba, o livro relata os detalhes de um episódio pouco conhecido mas que teve um desfecho exemplar. Quando, após uma espera de meses,  os jornalistas Florestan Fernandes Jr, pelo El País, e Monica Bergamo, da Folha, receberam autorização judicial para entrevistar Lula, ocorreu uma operação paralela.

Aliado irredutível de Sérgio Moro e da Lava jato, o portal  Antagonista tentou participar do evento. Considerando sua postura diante de Lula,  o risco de um tumulto destinado a esvaziar aquela que seria a primeira entrevista do ex-presidente após a prisão era uma certeza evidente. Além disso, seria uma ilegalidade, pois ninguém pode ser obrigado a dar uma entrevista quando não deseja — e Lula deixara claro que não queria receber a equipe do Antagonista.

Mesmo assim, nos dias anteriores ao depoimento, a tensão na sede da Polícia Federal em Curitiba era grande. “O superintendente da Polícia Federal, Luciano Flores, autorizou que os nomes vetados por Lula participassem da entrevistas,” escreve Morais, que publica as mensagens firmes, corajosas, que Monica Bergamo enviou ao delegado, na véspera do encontro com Lula.

“Estão induzindo a PF a erro e tentando viabilizar a entrevista”,escreve a jornalista.” Mas isso não vai ocorrer porque a lei garante o direito dele de falar apenas com quem quiser. Sem platéia”.

Com sua entrevista pioneira, Florestan Fernandes Jr e Monica Bergamo cumpriram um papel essencial para restituir um direito constitucional a Lula e todos os brasileiros e brasileiras — a liberdade de expressão. Outras entrevistas vieram, impedindo que Lula sofresse um segundo castigo, após uma prisão ilegal — mofar esquecido na cadeia.

Ao contar o episódio em seus detalhes, Fernando Morais ajuda a lembrar que, sob  temperatura desfavorável,  mesmo direitos elementares só podem ser assegurados com luta.

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